Por dividir um apartamento de três quartos com outras oito pessoas, Otávio* não conseguiria disfarçar os sintomas mesmo se quisesse. Há três semanas, começou a ter febre alta, tosse e dores de cabeça. “Tinha nevado e fazia frio. Não estamos acostumados com esse tempo e achamos que ele tinha pego uma gripe”, conta à BBC News Brasil Fabiana*, de 32 anos, que dividia com o rapaz o apartamento em Everett, na região de Boston, no nordeste dos Estados Unidos. Ele tinha sido infectado com o coronavírus.
Mas todos os moradores da casa só souberam disso depois que Otávio foi retirado de casa por uma ambulância, sem conseguir respirar. Há dez dias, ele está entubado e sedado na UTI de um dos hospitais do Estado de Massachussets que atendem imigrantes indocumentados como eles.
Grávida de 5 meses, Fabiana também contraiu a doença. Ela, o marido e o filho, de 2 anos, chegaram aos EUA há quase um ano, depois de deixar para trás a oficina mecânica dele e os serviços de confeiteira dela em Vilhena, em Rondônia.
Com uma renda familiar de R$ 1,5 mil, não conseguiram visto de turismo e resolveram atravessar a fronteira do México para chegar a El Paso, no Texas, uma travessia ilegal feita por um número recorde de brasileiros no último ano: quase 20 mil, segundo estimativas.
“A gente achava que finalmente ia viver os sonhos que já tinha deixado pra trás, que a gente ia mandar dinheiro pro Brasil. Era tudo ilusão. Quem pensa que vai vir pros Estados Unidos pra passar necessidade?”, relata, em lágrimas. Ela já emagreceu 25 quilos desde a viagem, que custou US$ 15 mil dólares, apenas parcialmente pagos a um coiote – o traficante de pessoas que viabiliza a entrada irregular de migrantes pela fronteira.
“Demos quase tudo o que a gente tinha, chegamos no país com US$ 100 no bolso”, diz. O marido arrumou “bicos” como azulejista, carpinteiro, faxineiro, ajudante. Cada dia em um lugar, com um patrão diferente. Recebia cerca de US$ 120 por dia. Mas, com a doença e o fechamento quase completo dos comércios há cerca de um mês, todos os trabalhos desapareceram.
O governo de Massachussets determinou que nada funcionará até o dia 4 de maio. Com o aluguel atrasado e uma dívida de US$ 3,8 mil com o coiote, Fabiana faz contas: “Recebemos três cestas básicas do pessoal da igreja, brasileiros que ajudam. Temos o que comer por mais duas semanas. Se ele não conseguir voltar a trabalhar até lá, não sei o que vai ser”.
O sofrimento de Fabiana é o mesmo de alguns milhares de brasileiros indocumentados nos EUA que, em meio à quarentena geral e à recessão econômica, não têm direito ao auxílio de US$ 1,2 mil aprovado recentemente pelo governo americano para pessoas em situação vulnerável — nem aos R$ 600 mensais da renda básica emergencial brasileira.
Segundo o Itamaraty, há hoje cerca de 1,2 milhão de brasileiros vivendo nos EUA. Deles, entre 250 mil e 400 mil não têm autorização para isso, segundo estimativa de 2016 do Migration Policy Institute. Invisíveis aos dois sistemas de proteção social e sem qualquer renda de trabalho, já que tudo parou, eles não sabem como pagarão as contas ou comprarão comida nas próximas semanas. E temem que até mesmo pedir ajuda possa levá-los à prisão ou à deportação.
“Imigrantes, especialmente os que não tem documentação, são os mais atingidos na crise. A maioria deles trabalha no setor de serviços, que está sendo afetado tremendamente. Tudo está fechado, até os hotéis, por ordem do Estado. A renda deles diminuiu muito. O imigrante não é funcionário, é autônomo, se não trabalha, não ganha. Não têm direito ao seguro-desemprego. As pessoas ficam desesperadas”, afirma Esther Pereira, diretora da ONG Immigrant Resource Center, sediada em Deerfield Beach, no sul da Flórida, que presta auxílio a migrantes em todo o país.
Quando o dinheiro termina antes da quarentena
Consultado, o Itamaraty informou que não teria como consolidar os números de pedidos de ajuda de brasileros em situação de “desvalimento” nos Estados Unidos em tempo hábil. Mas segundo a BBC News Brasil apurou, na última semana, apenas o consulado em Boston recebeu mais de 900 pedidos de ajuda, e o número tende a aumentar conforme a quarentena se prolongue.
“Nas últimas 48 horas, mais de cem brasileiros nos procuraram em busca de auxílio financeiro: quase ninguém pagou o aluguel, muita gente com criança pequena e há semanas sem receber nenhum dinheiro”, afirma Tiago Prado, um dos líderes comunitários brasileiros na região de Boston que ajuda a organizar e encaminhar as demandas dessas pessoas para instituições de caridade e autoridades brasileiras.
Por decisão judicial, ordens de despejo estão suspensas por enquanto, e a orientação de ONGs e líderes comunitários é de que as pessoas deixem de pagar o aluguel e mantenham o dinheiro que têm em mãos para gastos com comida e remédio.
“Não posso pagar o aluguel e ficar sem ter o que comer”, resume André*, de 27 anos, há cinco anos, morador de Nova York, a megalópole do Estado mais afetado pelo coronavírus, que responde sozinho por 150 mil casos.
A cidade está em quarentena total desde 22 de março. André perdeu o emprego de garçom antes disso, e viu todas as outras formas de trabalho desaparecerem. Sem recursos e sem visto, tomou uma decisão drástica: saiu de sua própria casa para sublocar o espaço e conseguir alguma renda.
Nesse período, foi morar com um amigo, dono de um restaurante, que tenta salvar o que restou do negócio apostando no delivery. Em troca do teto, André faz as entregas do restaurante. Ele diz que teme se contaminar, mas que não vê outra opção a não ser sair por aí com refeições sob o braço para arrumar um jeito de viver. André não possui convênio médico, e os EUA não contam com um sistema universal de saúde pública. Seu alívio é saber que o Congresso americano aprovou uma lei que obriga o Estado a custear testes e tratamento de saúde para quem contraia o vírus, independente de convênio ou de status migratório.
Embora a expectativa inicial seja de que a quarentena dure até o dia 30 de abril, André acredita que a situação vai se estender até o fim de junho, o que é provável, considerando-se que os EUA se converteram no novo epicentro global da doença no mundo. Hoje, a cada quatro infectados, um está no país: são mais de 400 mil contaminados e 15 mil mortos. E o pico da epidemia, de acordo com a projeção da Casa Branca, acontecerá por volta do dia 15 de abril.
“Se a quarentena passar de junho, aí sim o bicho pega, porque minha reserva vai acabar e não vou ter mais dinheiro nenhum”, diz André.
O prazo de André ainda é mais folgado do que o da paulista Roberta*, de 32 anos. Ela chegou aos EUA há um ano e dois meses com os três filhos – uma menina de 12 e gêmeos de 8 anos. Entrou com visto de turista, mas já sabia que não iria voltar. Cabelereira de formação, ganhava em média R$ 3 mil por mês como faxineira. O dinheiro era o suficiente para as contas e para juntar uma reservinha com a qual pretendia comprar os equipamentos necessários para voltar a trabalhar com corte de cabelo.
A epidemia atropelou os planos. No último dia 22, o governo da Filadélfia, na Pensilvânia, colocou a região em quarentena. Os clientes todos sumiram.
“Quando anunciaram, fiz uma boa compra para estocar comida em casa, mas já não tinha muita coisa na prateleira. Tava difícil de encontrar carne, frango… Fui a quatro mercados para achar um pacote de arroz. Agora, reponho o que vou usando.”
No sustento durante a crise, ela está consumindo os US$ 400 que guardava para a compra de tesouras e secadores. “Não posso nem falar que é um fundo de emergência, porque é praticamente só para comer e pagar as contas depois.”
A família mudou os hábitos para fazer o dinheiro render, mas Roberta sabe que os recursos não vão durar além dos próximos 30 ou 40 dias. “A gente não pede mais comida fora duas vezes por semana como antes. Também sempre inventava uma refeição diferente. Agora é só o básico: arroz, feijão, macarrão, e estou racionando.”
Ficar ou voltar
Em casa, Roberta se desdobra para entreter as crianças com jogos de tabuleiro, celular e televisão. Com bronquite, ela é grupo de risco e não se arrisca nem dar uma volta no quarteirão. Sua atitude não é exceção nas cidades ao redor do país. Mesmo áreas normalmente apinhadas de gente, como a Times Square, em Nova York, estão desertas nas últimas semanas.
“É desesperador ver tudo fechado, ninguém na rua. E passa muita ambulância, que é o som que eu mais ouço da minha janela. Ficava imaginando quem estava ali dentro, me colocava no lugar das outras pessoas que estão passando sufoco. É uma situação muito difícil, muito estranha.”, conta Tatiana*, de 51 anos, há sete morando em Nova York.
Ela vive legalmente nos EUA, como estudante — mas seu trabalho, como babá para famílias brasileiras, é irregular, já que seu visto não permite que ela ganhe dinheiro no país. Por isso mesmo, ela não poderia receber auxílio financeiro do governo americano. Sem salário, está consumindo suas reservas, que devem durar mais um mês.
O impacto financeiro da pandemia fez com que ela cogitasse voltar para o Rio de Janeiro.
“É uma mistura de sentimentos. Dá muita vontade de ir, sair de casa só com a minha mochila e ficar perto da minha família, porque estou sozinha aqui. Se isso continuar, não sei se vou me arriscar a voltar. Sinto que meu tempo aqui ainda não acabou. É um turbilhão de pensamentos.”, diz Tatiana.
Os imigrantes ouvidos pela BBC News Brasil se dividem entre querer ficar e a vontade de partir.
Roberta sabe que a situação pode demorar a voltar ao normal. “Querendo ou não, vai ser muito mais fácil eu me recuperar financeiramente aqui do que no Brasil”, ela aposta. Mesmo se pudesse receber algum auxílio do governo brasileiro caso voltasse, Aline diz que essa ajuda é “muito pequena se comparado à quantidade de impostos e contas” que precisa pagar no Brasil, onde dividia a casa com sua mãe.
“Não sobrava quase nada no fim do mês. Aqui eu consigo viver bem melhor e posso dar uma educação boa para os meus filhos.” Além disso, se ela deixasse o país, ficaria impedida de voltar aos EUA por dez anos – punição imposta a imigrantes deportados ou que viveram no país ilegalmente.
É a mesma situação de Fabiana que, no entanto, afirma que voltaria ao Brasil “amanhã mesmo” se ao menos tivesse como pagar as passagens. “Mas meu marido me diz: como vamos arrumar dinheiro pra ir embora e quitar as dívidas que temos lá no Brasil?”.
Pelo menos duas famílias já pediram ajuda ao consulado de Boston para ser repatriadas. Os casos estão em análise. Para Pereira, é provável que a quarentena impulsione muitos a voltarem para o Brasil.
“Acho que a pandemia está mudando o modo de pensar das pessoas, porque está mostrando que o que traz conforto mesmo são a família e os amigos. E ninguém sabe como a economia vai ficar depois”, diz ela. E conclui: “Quando há uma crise, os serviços não essenciais são os que sofrem mais, e são esses serviços que o brasileiro presta. Se as pessoas não tiverem dinheiro, você não chama uma faxineira, não tinge o cabelo, não faz a unha, não vai lavar o carro. Vai demorar um tempo para o dinheiro voltar a circular, e essas pessoas não vão ter uma renda. Não sei o que essas pessoas vão fazer”. Informações da BBC Brasil.
* Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar suas identidades