A pandemia de covid-19 pode estar atrapalhando o acesso de famílias à Justiça. Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Justiça da Bahia, a pedido do jornal Correio, o número de pedidos de pensão alimentícia no estado, de março a julho, foi 72% menor do que no mesmo período de 2019. O levantamento aponta, ainda, outra redução nos números: houve queda de quase 50% nos pedidos de revisão de pensão no período de 16 de março a 20 de julho.
Os dados seguem a linha dos divórcios, que, de março a junho de 2020, reduziram 57%, como mostrou o Correio no mês passado. Especialistas em Direito da Família dizem que os números não correspondem à realidade e que essa redução pode ser por conta da dificuldade da população em acessar o poder judiciário durante a crise da covid-19, mesmo que seja possível fazer alguns procedimentos on-line.
“Sem atendimento presencial, as pessoas não estão conseguindo ter acesso à justiça, o que justifica essa diminuição”, analisa Cristiano Chaves, especialista em Direito da Família e professor da Faculdade Baiana de Direito. Ele ressalta que os principais órgãos judiciais onde é possível protocolar ações desta natureza e que inclusive oferecem serviços gratuitos, como a Defensoria Pública, o Ministério Público, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e até mesmo faculdades, não estão abertos fisicamente e é mais difícil iniciar o processo pela Internet, ferramenta que nem todos têm acesso.
A Defensoria Pública da Bahia informou que não havia atendimento on-line para os casos de pensão alimentícia. Até maio, o órgão só atendeu urgências, e os defensores da área de família trabalharam apenas nos casos antigos, já agendados. Só em Salvador, a média de atendimentos que envolvem pensão alimentícia foi de quase 100 por mês em junho, de um total de 1.191 solicitações. Destas, 897 foram litigiosas e 294 foram por mediação.
Em nota, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que estabeleceu um regime especial de funcionamento em todos os órgãos do Poder Judiciário e uma lista de serviços que seriam apreciados, devido à urgência. Na lista não constam pedidos de pensão alimentícia, embora tenha liminares e antecipação de tutela de qualquer natureza, inclusive no âmbito dos juizados especiais.
“O funcionamento, durante o período emergencial, se deu, desde então, em horário idêntico ao do expediente forense. A norma determinou ainda que os tribunais deveriam garantir minimamente o acesso aos serviços judiciários”, diz o CNJ. Procurado para comentar a falta de acesso à justiça, a assessoria do TJ não respondeu até a publicação.
O professor Cristiano Chaves entende que os números aumentarão após a pandemia, quando esses órgãos voltarem à rotina de atendimento presencial.
“O que vamos ter é uma litigiosidade difusa, ou seja, só virá depois. Após a pandemia é que vamos saber a extensão dessa litigiosidade e do tamanho do problema que temos”, prevê Chaves.
A mesma observação foi feita pelo advogado e procurador do Estado da Bahia, Roberto Figueiredo. “São dados que me preocupam muito porque eles passam uma falsa impressão de que as crianças não estão precisando de pensão alimentícia ou que os devedores não precisam de uma revisão”, explica.
“A gente está passando por uma recessão e tem muita gente em casa sem poder trabalhar e sem dinheiro, então esses números tenderiam a aumentar”, completa Figueiredo.
O procurador sugere que mesmo quem tem acesso à Internet pode não conseguir, por exemplo, escanear os documentos necessários, imprimir, assinar e enviar à Defensoria ou a um advogado.
Há ainda a possibilidade de não conseguir bancar ou ir até um defensor. Por isso, as pessoas com baixa renda iriam à Defensoria, que esteve fechada entre março e maio para receber pedidos que não fossem urgentes. “Se a pessoa precisa de pensão, é porque é alguém que não tem recurso. Quem não tem recurso, recorre à Defensoria ou assistência pública. Se a pessoa está devendo, ela pede revisão da pensão também por não ter dinheiro”, supõe o procurador.
Uma outra hipótese, levantada pelo professor Cristiano Chaves, que explicaria essa diminuição, é que algumas pessoas estão resolvendo o assunto extrajudicialmente, já que a Justiça está com pouca acessibilidade. “Há um sentimento natural das pessoas de tentarem resolver as coisas e também porque estamos num período de ineditismo”, completa o professor, que também é promotor de Justiça do Ministério Público da Bahia.
A solução extrajudicial foi o que aconteceu com Juliana Santos**, que se separou durante a pandemia e ainda não entrou com o pedido de divórcio nem com o pedido de pensão alimentícia, a qual tem direito por ter dois filhos. Ela se separou em junho do marido, que já não mora com ela. Para ajudar nos custos com as crianças, Juliana acertou com ex-esposo que ele enviasse uma quantia a ela mensalmente. Porém, ela reclama que está quase no fim do mês e ainda não entrou o dinheiro na conta. Juliana recorreu então aos familiares para ajudá-la financeiramente e conta também com as cestas básicas da Prefeitura, que recebe através dos filhos, matriculados na rede municipal de ensino.
Já o aposentado Anselmo Bastos, que paga pensão alimentícia para a ex-mulher por ter tido uma filha durante a união, não entrou com um pedido de revisão do valor. Ele explica que nenhum dos gastos foi alterado com a pandemia.
Quem tem direito à pensão
Apesar da palavra “alimentos”, a pensão alimentícia não se limita apenas aos recursos necessários à alimentação, mas abrange os custos com moradia, vestuário, educação, saúde, entre outros. Podem recebê-la os filhos, ex-cônjuges e ex-companheiros de união estável. Aos filhos de pais separados ou divorciados, o pagamento da pensão alimentícia é obrigatório até os 18 anos de idade ou, se estiverem cursando o pré-vestibular, ensino técnico ou superior e não tiverem condições financeiras para arcar com os estudos, até os 24 anos. No caso do ex-cônjuge ou ex-companheiro, é preciso comprovar a necessidade do beneficiário para os custos relativos à sua sobrevivência, assim como a possibilidade financeira de quem deverá pagar a pensão.
Como a pensão é calculada
O valor da pensão alimentícia é estabelecido por três pontos. Em primeiro lugar, é levado em conta a necessidade da criança. “É calculado de acordo com o padrão de vida que ela tem, para que ela não sofra, ou sofra o menos possível” esclarece o advogado especialista em Direito da Família Victor Macedo. Em segundo lugar, é analisada a renda dos responsáveis, para que, em seguida, seja definido um valor de acordo com a proporção de rendimento de cada um deles. Caso haja alteração ou na necessidade do menor ou na renda dos pais, poderá haver pedido para revisão no valor.
Como fazer o pedido à Defensoria Pública
Durante a pandemia, para fazer a triagem e para agendar seu atendimento na Defensoria Pública da Bahia, a pessoa precisa ligar (fixo ou celular) para o número 129 ou 0800 071 3121. Ou agendar online através do site da Defensoria no endereço agenda.defensoria.ba.def.br. No Facebook, a pessoa também pode ser atendida pelo chat (opção 1: atendimento geral; opção 2: atendimento a mulheres em situação de violência doméstica). A pessoa também pode agendar no smarthphone pelo app Defensoria Bahia (android). Como não há atendimentos presenciais, o defensor fala com o assistido por telefone, ou por chamada de vídeo. A média de espera para na área de família é de 13 a 15 dias.
Levantamento TJ-BA de 16/3 a 20/7, a pedido do Correio:
- Pedido de pensão alimentícia
2020: 1.859
2019: 6.829
Redução de 72,7%
- Pedido de revisão de pensão alimentícia
2020: 527
2019: 1.042
Redução de 49,4%
Fonte: Correio da Bahia