Mais de 4,1 milhões de brasileiros foram infectados pela covid-19. Sem contar as subnotificações. Todos, de alguma forma, sentiram os impactos da pandemia e tentam se acostumar com o novo normal. Os efeitos de uma realidade de restrições, em meio às drásticas mudanças, começam a se tornar evidentes e intensificam a discussão de uma quarta onda da doença: a emergência de saúde mental como consequências da crise sanitária. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que quase 1 bilhão de pessoas vivem com transtorno mental, 3 milhões morrem todos os anos devido ao uso nocivo do álcool e uma pessoa morre a cada 40 segundos por suicídio. Com os reflexos da pandemia, os números devem piorar.
Presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva relata que especialistas já perceberam um novo movimento de doenças mentais se formando. “Essa doença (covid-19) não vai ficar só na primeira onda, segunda onda e terceira onda. Nós vamos ter uma onda das doenças mentais, por vários motivos”, afirma o médico.
A separação da pandemia em ondas foi inicialmente proposta pelo pneumologista do Hospital Universitário Emory, em Atlanta (EUA), Victor Tseng. Na definição do médico, a quarta onda se dá com o adoecimento mental da sociedade, quando uma série de doenças provocadas pelas mudanças bruscas e pelo medo da covid-19 geram consequências na saúde mental. Esse estágio é antecedido por outras três ondas.
A primeira trata-se da pandemia em si, com os adoecimentos e mortes pelo vírus. Já a segunda se refere-se ao colapso do sistema de saúde, com a superlotação dos hospitais e a incapacidade de atendimento a todos os doentes do novo coronavírus. A terceira está relacionada ao agravamento de outras doenças crônicas pelo não tratamento durante a pandemia, fazendo com que pacientes que deixaram de lado os cuidados e consultas rotineiras em razão do isolamento social piorem o quadro clínico ou até mesmo morram.
As ondas, no entanto, podem ocorrer concomitantemente, como explica o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva. O médico destaca que a quarta onda teve início quando ocorreram as primeiras mortes por covid-19. “É o momento em que começam as restrições de liberdade”, pontua. “As ondas dão uma subida e, depois, começam a cair, porém, a quarta onda começa ali, ainda na primeira onda, quando começam as mortes, perdas e restrições; e continua subindo. Isso ocorre porque as doenças mentais, quando desencadeadas, permanecem por meses e, em alguns casos, por anos. Ela não vai cair, ela faz um platô e se mantém.”
Para conviver com o novo vírus, a humanidade precisou abdicar das convivências sociais e as marcas tornam-se cada vez mais evidentes. Somente entre março e abril, um levantamento feito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 23 estados mostra que os casos de depressão aumentaram 90% já no início da pandemia no Brasil. A doença é a principal causa de suicídio, seguida pelo transtorno bipolar e abuso de substâncias. Em suma, 96,8% das mortes por suicídio estão relacionadas a transtornos mentais.
Consultas
Casos de crises ou surtos de ansiedade e estresse são demandas cada vez mais frequentes nos consultórios. De acordo com uma pesquisa realizada em maio pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), 47,9% dos psiquiatras entrevistados perceberam haver um aumento nos atendimentos realizados após o início da crise. Vale destacar, ainda, que 89,2% dos médicos entrevistados relataram agravamento de quadros psiquiátricos nos pacientes. O levantamento revelou, também, que 67,8% dos entrevistados receberam novos pacientes após o início da pandemia. Outros 69,3% atenderam a pacientes que já haviam recebido alta médica. A pesquisa ouviu psiquiatras de 23 estados e do Distrito Federal.
“Gente que nunca teve um quadro psiquiátrico na vida começa a ter queixas por causa da situação vivenciada, esse quadro psiquiátrico vem por causa da pandemia. Depois, temos um segundo grupo, de pessoas que já tinham recebido alta e voltam a precisar de tratamento. Temos, ainda, quadros que estão sendo tratados e sofrem uma piora por conta dessa situação”, comenta Antônio Geraldo.
Em pauta nas consultas, necessidade de confinamento, risco de instabilidade financeira, possibilidade de contágio e morte. “A maior parte das pessoas sentiu angústia, medo, desesperança. As relações interpessoais ficaram abaladas para uns, para outros, o isolamento por conta da doença foi o fator mais perturbador”, detalha a psicóloga Adriane Garcia, do Centro Clínico do Órion Complex.
Em meio à redução das consultas presenciais, especialmente no início da pandemia, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) ampliou os atendimentos virtuais, como alternativa para dar continuidade ou iniciar os tratamentos. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, entre os pontos negativos para o adoecimento mental estão a falta de espaço, infraestrutura para trabalho, instabilidade econômica, atividade física, luz solar, rotina, restrição de interações sociais e restrição de liberdade. “A sociabilidade é fator protetor para as doenças mentais”, completa.
Falta de acesso
Ainda em meio ao aumento de procura por atendimentos na área, o tema deixa de ser priorizado. Com o início do Setembro Amarelo, dedicado à prevenção do suicídio, a triste realidade que interrompe mais de 800 mil vidas no mundo por ano é colocada em evidência na campanha, provocando o debate sobre a desigualdade de acesso e falta de atenção à saúde mental. A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), órgão vinculado à OMS, tem alertado sobre a gravidade de uma crise generalizada de saúde mental e a importância de se ofertar ajuda.
No âmbito da pandemia, quadros de depressão e ansiedade teriam atingido níveis inéditos, de acordo com dados levantados pela Opas nas últimas semanas. Entre os mais afetados psicologicamente na pandemia estão Brasil, México e Estados Unidos, onde metade da população adulta indica um aumento de estresse perceptível.
“A menos que assumamos compromissos sérios para aumentar o investimento em saúde mental agora, as consequências para a saúde, sociais e econômicas serão de longo alcance”, ressaltou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, ao defender o foco na área em meio à pandemia.
Rede de assistência
Com abordagens psicoterápicas, o Centro de Valorização da Vida (CVV), entidade sem fins lucrativos de prevenção do suicídio e apoio emocional, fortaleceu a rede de assistência. “Buscar oferecer ajuda tem sido ainda mais importante. Notamos que há muitas pessoas nesse movimento de acolher sem criticar, conversar e compreender os sentimentos daqueles que passam por momentos de tristeza, ansiedade, medo ou sensação de solidão”, explica a porta-voz e voluntária do CVV Adriana Rizzo.
Contando com mais de 4,2 mil voluntários de todo o país, o CVV realiza mais de 3 milhões de atendimentos anuais pelo telefone 188 (sem custo de ligação), ou pelo www.cvv.org.br , via chat, e-mail ou carta. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS) também são uma opção gratuita de buscar ajuda. Os locais oferecem atendimento com psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, assistentes sociais e terapeutas.
Profissionais
Buscando promover a saúde mental, o Ministério da Saúde promete para setembro uma série de ações de educação em Saúde em Defesa da Vida, abordando temas como prevenção ao suicídio, automutilação e ética da vida. Um serviço de apoio psicológico aos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) também funciona, desde abril, como forma de reconhecer a necessidade de apoio aos profissionais, tanto pelo trabalho intenso, quanto pelo risco de infecção. “É dessa forma que o Ministério da Saúde quer (…) prevenir danos à saúde mental de todos os brasileiros”, disse a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro. (BL e RR). Correio Braziliense.