Por Aílton Gonçalves
É bem verdade que em meio ao clima de reinvenção que o jornalismo vem passando, aliás, não apenas o jornalismo, mas talvez de um modo mais geral, todas as áreas estejam passando por mudanças significativas para se adaptarem às transformações propostas pela inserção desordenada e abruptamente ávida, da tecnologia no cotidiano dos ambientes profissionais. Trata-se de um momento importante, não somente para o mercado comunicador. Essa transição serve para um (re) pensamento sobre a realidade de determinadas profissões, e o que o futuro está preparando para elas.
Na verdade, essa readequação, principalmente no cenário jornalístico, deixa margem para uma concorrência desleal com relação ao papel do comunicólogo (claro que em se tratando do jornalista, a técnica se sobressai ante uma mera “câmera na mão e uma ideia na cabeça” , capaz de produzir “boa imagem”, captada por uma pessoa comum) não necessariamente pela falta de habilidade dos profissionais da comunicação (muitos, inclusive, já estão seguindo na direção do ‘novo jornalismo’, a exemplo do jornal Gazeta do Povo, importante jornal de Curitiba, que no início do ano 2017, decidiu aposentar os modos tradicionais de fazer jornalismo, para adaptar ao modelo digital, consolidando-se como o primeiro jornal brasileiro a adotar esta modalidade, de maneira integral, em suas edições, mudando totalmente a maneira de informar os seus leitores.
E se for analisado do ponto de vista de quem vai atrair o seu público para essa plataforma, é positivo, talvez até mais prático, já que se trata de um segmento maleável, se comparado ao analógico, e ainda permite uma maior aproximação, e melhor interação do jornalista com o seu público), mas por conta da acessibilidade que cada vez mais as pessoas têm aos mecanismos de transmissão de informação, seja através de fotografias instantâneas, imagens dinâmicas, transmitidas ao vivo, ou mesmo através de textos, nas redes sociais da internet, sem contar as ferramentas que já estão há tempos no cotidiano das pessoas.
E todos esses recursos, em favor da comunicação, proporciona uma imensa instantaneidade informativa. Agora se faz desnecessário o uso de determinados equipamentos, sobretudo equipes inteiras na realização de coberturas, pois os próprios celulares são capazes de conectar o telespectador ou o ouvinte ao canal qual lhe dá a notícia diária. É claro que os smartphones não conseguem fazer tudo, mas se tornaram meios indispensáveis no trabalho jornalístico e vêm ganhando cada vez mais fôlego no corriqueiro da comunicação, sem pedir licença.
Algumas ferramentas originadas dentro do ambiente das redes sociais da internet, como a ‘live’, mecanismo desenvolvido no Instagram e replicado por outras comunidades, como o Snapchat e o Facebook, foram criadas, a princípio, para fazer transmissões noticiosas, muito mais como uma ferramenta jornalística do que um diário dinâmico, social, de populares, mas acabou ganhando proporções gerais, caindo no gosto dos usuários comuns e se transformando num diário em movimento.
E, se antes, a briga do profissional da comunicação era por dar a informação primeiro; hoje, essa disputa fica um pouco em segundo plano. Logo, importa, o método aprendido na academia, que populares, mesmo dispondo de equipamentos de última geração, apesar de representar um verdadeiro “arsenal bélico”, não conseguem a proeza de conduzir a informação de maneira profissional.
Assim sendo, um popular pode até comunicar de forma amadora aos seus “seguidores” sobre um acidente, um evento, um fato, e conseguir levar a mensagem a quem acompanha sua transmissão, ao vivo ou não, mas o trabalho do jornalista não fica, em ‘termos periciais’, refém das ferramentas da internet nas mãos de quem não sabe do que se trata a técnica, para uma boa comunicação estática ou dinâmica.
O importante para o amador é dar a informação, a qualquer custo, sem preocupação com o efeito da repercussão, inclusive da exposição do protagonista da cena; método respeitado e praticado pelo profissional. Até por conta da ética, que neste caso não é levada em conta (pelo popular).
E falando em ética, o caso do falso fotógrafo da ONU, que teria plagiado o trabalho de profissionais, utilizado de uma técnica estupidamente amadora para inverter a posição das imagens, sem que o Google reconhecesse que se tratava de plágio, e conseguiu o apoio da própria Organização das Nações Unidas (ONU), por forjar um engajamento com causas sociais. O que o levaria a ser requisitado nacional e internacionalmente pelas supostas imagens de guerra, produzidas por ele, usando um falso perfil nas redes sociais, onde aparecia como um surfista, de boa aparência e preocupado com assuntos de interesses humanitários. Tal perfil não foi posto em xeque devido ao aspecto físico, condizente com as informações inscritas em suas redes sociais. E não seria possível descobrir que se tratava de uma farsa, sem uma perícia ou uma checagem de dados.
É um exemplo claro da falta de ética. Nos faz questionar sobre a veracidade de determinadas imagens de cunho jornalístico, propriamente dito, como o próprio Ritchin sugere. Devido à passividade de manipulação das fotografias, nos tempos de acessibilidade a todos, ter um olhar cético, antes de tudo, com relação às imagens, é algo primordial, mais até do que um olhar sensível, no sentido de ver elementos reflexivos transcendentes naquela imagem. Inclusive o próprio público já tem essa visão cética acerca das fotografias cunhadas no cenário informativo; tornando questionável, tanto a realidade descrita, a priori; da mesma maneira, em segunda instância, o trabalho do jornalista.
Percebi, há pelo menos três anos, em uma figura imagética que circulava pela internet, sobre uma passeata do Partido dos Trabalhadores, na campanha de 2016, onde era possível ver, graças ao destaque que deram à cena descrita na fotografia – claro que pode se tratar de uma montagem feita por grupos de oposição, isso não está sendo questionado aqui, no momento –, em pelo menos quatro pontos diferentes, o mesmo cidadão, (trajando uma camisa vermelha, uma calça jeans e um sapato azul), colocado estrategicamente, talvez para dar uma ideia de que o evento carregou uma grande multidão.
Certamente que isso não vai mudar o caráter da figura, no sentido de tornar o evento mais cheio por se replicar quatro vezes a imagem da mesma pessoa em pontos diferentes de uma foto, mas chama a atenção para a fidedignidade do que está sendo vendido ao público.
Para Fred Ritchin, crítico de fotografia, a concorrência neste mercado, fica no mesmo campo, ele julga a ‘irrestrição’ facilitada de as pessoas poderem ser “repórteres fotográficas” com mais normalidade nesse tempo, como algo ameaçador à profissão do fotógrafo. Segundo ele, o fotojornalismo tem de ser reinventado, não no sentido de adequação, mas de precisar de razão para continuar existindo, caso contrário vai ruir em vapor.
Quando ele fala sobre a grande imprensa ao enviar profissionais da fotografia para uma cobertura sobre determinado tema pré-estabelecido, talvez de ordem eventual, contínua, que se roteirizou sobre a sequência dos cliques, por ser algo “comum”, comum no sentido do não-excepcional, daquilo que já antes ocorreu, e criou-se um tom de normalidade, um script, ou talvez um ciclo vicioso sobre que tipo de retrato deve se fazer daquele fato, tanto do ponto de vista da empresa, como obedecendo à linha editorial do jornal, quanto ao que o próprio fato “pede”.
Eu devo concordar que se trata de uma prática que por muitas vezes ainda perdura, primeiro pelo conceito estabelecido previamente sobre que ângulo fotografar, que imagem chama atenção, baseada em ilustrações anteriores. Como exemplo, aqui na Bahia podemos citar a Lavagem do Bonfim, que acontece anualmente; e se não tiver um olhar mais curioso por parte do fotógrafo, as mesmas cenas serão capturadas ano após ano, por conta do significado da festa, por parecer que tudo se resume na lavagem das escadarias, concentrando o quadro na figura das baianas.
Mesmo em se tratando do factual, o repórter fotográfico deve se valer da sua perspicácia para fotografar aquilo que ninguém fotografa, claro que as outras figuras podem ser úteis para registro factual, mas para que não haja condicionamento ao repetitivo e ao clichê fotojornalístico, é preciso romper as barreiras da caixa, e enxergar outras possibilidades ante a cena a ser registrada.
Cita-se, o exemplo da imagem do desabamento de uma fábrica de roupas na Rana Plaza, em Bangladesh, onde a fotógrafa Taslima Akhter, muito argutamente, captou a foto de um casal abraçado em baixo dos escombros, como numa tentativa impossível de se salvarem. Talvez o último estímulo, como retratando o abrigo de um e do outro em ambos os braços, que agora se fazia único, como um nó que se ata numa corda ao perceber que ela pode ceder. E é interessante atentar para a expertise desta profissional premiada, no sentido literal, por que se estivesse obedecendo a um script, talvez fizesse uma foto de ângulos óbvios, possíveis e repetidos, como fazem os veículos, em se tratando de tragédias dessa natureza.
Mas aquela imagem, intitulada de Abraço final, carrega aspectos de personalidade bastante ricos, de repente até reflete a pessoa que há por trás da mulher que manuseava a câmera; e o sangue escorrendo pelo olho fechado do homem, revela-nos um sentimento de aflição. Então, além de levar ao seu público, uma notícia, ainda propõe um momento reflexivo sobre a gravidade do fato, é possível traçar uma dinâmica a respeito daquele assunto mensurado na fotografia.
O retrato documental, do ponto de vista técnico, como se refere o texto da reportagem do Mídia Ninja, correlato à crise que pode estar alcançando o campo do fotojornalismo, é inquestionavelmente a projeção de valores desta sociedade, como já mencionei com outras palavras anteriormente: é uma espécie de reflexo que leva à reflexão. Pois, a verdade é que os princípios ideológicos, sociais e humanos do fotógrafo, estarão impressos, tanto quanto a imagem que a sua câmera consegue aprisionar pós-clique.
O que trará aos olhos mais apurados a isso, a realidade a ser atentada, afim de não passar despercebida, sem ser forçoso, todavia convidando a ligar os sensores da sensibilidade para uma melhor compreensão de tal realidade.