O Censo Demográfico do IBGE de 2022 mal começou e os recenseadores, responsáveis por obter os dados dos cidadãos em entrevistas por toda a Bahia, já relatam problemas. Desde o dia 1º agosto, quando a pesquisa começou, os trabalhadores afirmam lidar com situações inesperadas como o não pagamento referente ao setor de coletas, a ausência do auxílio-transporte para locomoção e até o pagamento valores abaixo do que era esperado. Além disso, há questionamentos sobre a segurança do trabalho.
O resultado do acúmulo de problemas é uma debandada dos profissionais que, mesmo concursados, preferem abrir mão do trabalho que conquistaram. Isso porque, dos 12.485 recenseadores recrutados pelo IBGE, 571 já foram desligados do serviço em menos de um mês, o que representa 4,6% do efetivo nas ruas. Dos desistentes, apenas sete saíram por decisão do órgão até a manhã de sexta-feira (19).
Na capital, um grupo organizado de recenseadores se articula para reivindicar melhorias. No domingo (21), a União dos Recenseadores de Salvador promoveu uma assembleia online para tratar dos problemas que serão apresentados formalmente para o instituto. Caso não obtenha uma solução, a entidade cogita até uma greve dos profissionais, o que poderia parar o Censo. Pelo menos, é o que garante Lucas Ferreira, representante do grupo.
“Fizemos uma primeira reunião de acolhimento [das reclamações]. Essa semana vamos comunicar o IBGE e dar tempo para que se pronuncie. Caso não haja uma resposta, a ideia é parar e não só Salvador, mas o Brasil como um todo. Porém, como o movimento começa aqui, as primeiras ações serão tomadas na cidade”, diz ele, relatando que colegas de todo o país relatam problemas similares.
Várias queixas
A atitude de pensar até em uma greve para os profissionais vem da impossibilidade de continuar o trabalho com os problemas relatados. Um recenseador, que prefere não se identificar, explica por que acredita que o IBGE está em atraso com ele e como isso afeta seu orçamento.
“Nós somos pagos por setores. Quando completamos o número de residências estipuladas para aquele setor, precisamos receber. Eu já finalizei o primeiro, não recebi o referente e já estou no segundo. Sem o pagamento, não tenho como continuar porque contava com esse dinheiro para quitar contas”, explica ele.
Superintendente do IBGE na Bahia, André Urpia diz que a possibilidade do instituto estar em atraso é baixa. De acordo com ele, a partir do momento que o recenseador completa a coleta em um setor, o pagamento não é automático e há um período para análise do trabalho. “Existe uma supervisão que pode demorar até 15 dias para o efetivo pagamento. O trabalho feito é observado por um supervisor com base em uma sistemática, e isso leva tempo. Estamos no dia 20 e [o IBGE] só poderia estar atrasado caso o trabalho fosse entregue no dia 5″, explica Urpia.
Outra reclamação dos recenseadores é quanto ao auxílio-transporte. Segundo Luana, 31 anos, profissional que opta por não revelar o sobrenome, o IBGE deveria pagar R$ 9,80 por dia para locomoção, o que resultaria em R$ 49 por semana. Porém, além do auxílio estar atrasado, ela afirma ter recebido apenas por uma semana, e de maneira retroativa.
“Recebi apenas no final da primeira semana, o que não deveria porque auxílio a gente recebe antes, não tira do próprio bolso. O valor das últimas duas não veio e não tenho como pagar. Se não chegar, essa semana não vou conseguir ir para a rua”, conta ela.
Sobre isso, Urpia afirma que a demora para o depósito do auxílio é comum em um primeiro momento. “O IBGE tem um tempo para efetivar o pagamento entre o momento em que o recenseador assume o setor ou devolve a produção feita. Para essa primeira leva, estamos fazendo um pagamento dividido, sem pagar o valor inteiro por conta das desistências e trocas, que demandam uma devolução dos valores e geram uma série de trabalhos extras”, sustenta o superintendente, garantindo que os percentuais vão aumentar e chegar ao recenseador de maneira integral.
Há também demandas por uma ajuda de custo relacionada à alimentação dos recenseadores. No entanto, o instituto afirma que isso não está previsto em contrato. Já Lucas Ferreira, da União dos Recenseadores de Salvador, aponta que foi prometido algo diferente aos profissionais.
“O que foi passado para nós foi uma ajuda de custo que não está descrita como transporte, alimentação ou qualquer outra coisa. Durante o treinamento, questionamos se teria uma ajuda de custo para água e alimentação. Prometeram uma ajuda, mas não disseram qual seria esse valor e até agora estamos esperando”, relata o representante.
Treinamento
Antes de irem para a rua e começarem o trabalho de pesquisa, os recenseadores de todo o país tiveram que passar por um treinamento. Para realizá-lo, receberam uma ajuda de custo de R$ 200. Ou pelo menos deveriam receber. Cerca de 600 recenseadores ainda não foram pagos com esse valor no estado devido a problemas no sistema do IBGE.
Mariana Viveiros, coordenadora de divulgação do Censo 2022 na Bahia, explica que os atrasos não ocorrem por conta de falta de verba e, sim, por questões operacionais que impediram o pagamento desses recenseadores.
“Quando eles saem do treinamento, recebem uma ajuda de custo, mas tivemos um problema no sistema do IBGE que atrasou esses pagamentos. Os mais afetados foram aqueles que fizeram o treinamento no mês de julho”, afirma.
Outro problema que teria favorecido o não pagamento da ajuda de custo é o cadastramento de alguns recenseadores, de acordo com a coordenadora.
“Os erros de cadastro também não foram irrelevantes. As pessoas deram, às vezes, a conta errada ou insistiram em fornecer uma conta poupança, que não recebe”. O pagamento pelos serviços prestados no Censo só é feito através de conta corrente.
Mariana Viveiros ressalta que o instituto está realizando um esforço para que os valores sejam pagos o mais rápido possível, o que deve acontecer ainda este mês.
Insegurança
Para além das questões relatadas, os profissionais também enfrentam a insegurança, que está mais presente no dia a dia de Jadsom Gonzaga, 59, desde o dia 1º de agosto, quando ele começou a rodar nas ruas da cidade no papel de recenseador. Ele realiza a pesquisa deste ano no bairro de Brotas e afirma que está “vulnerável ao acaso” todas as vezes que sai de casa para cumprir a função temporária.
“Nós precisamos de um suporte maior em relação à integridade física, à segurança. Tem moradores que só estão em casa à noite, e isso exige, muitas das vezes, que a pessoa se desloque fora do horário comercial para fazer o Censo. Salvador é muito grande, então há lugares mais perigosos que outros. Sendo assim, estamos vulneráveis ao acaso”, diz ele.
Somado à insegurança e exaustão que o dia a dia como recenseador gera por causa do deslocamento contínuo a residências, Jadsom diz que os baixos salários e falta de suporte à alimentação são grandes influenciadores da desistência do cargo. Os trabalhadores receberam antes de começarem a pesquisa um treinamento e a ajuda de custo de R$ 200, e o resto da remuneração é feita depois que os recenseadores finalizam um perímetro urbano delimitado pelo IBGE.
“Eu acho que deveria ter mais apoio ao recenseador, tanto em relação à segurança quanto à alimentação. Temos que bancar a alimentação do nosso bolso, infelizmente. A gente enfrenta o ‘sobe e desce ladeira’, encontra pessoas que se recusam a falar e recebe porta na cara. Depois desse trabalho todo, tem colegas meus que recebem R$ 400. Por isso, muitos desistem”, pondera.
Logística
Para o recenseador Edilson Santos, 22, outro problema é a logística. Tendo que sair de Pernambués para Brotas, ele conta que a ajuda de custo para o transporte é baixa. Fora isso, outra dor de cabeça, segundo ele, é a dificuldade de acesso a alguns locais.
“Eu tenho que me virar, sem suporte, para conseguir fazer as entrevistas em lugares mais restritos”, relata.
Recenseador no município baiano de Capela do Alto Alegre, no nordeste do estado, Paulo Matos, 22, também lamenta as dificuldades. Ele conta que um dos seus maiores desafios é explicar a importância do Censo e, em meio à sua rotina, já enfrentou a hostilidade de uma pessoa que se recusou a participar da entrevista.
“Um senhor bateu o portão na minha cara e disse que de estelionatário já bastava os da televisão. Além disso, afirmou que não iria responder porque eu aparentava não ser uma pessoa honesta”, conta Matos.
Em meio a casos de hostilidades como esse, o superintendente do IBGE na Bahia, André Urpia, diz que o órgão tem procurado informar, através de canais de comunicação, a importância de atender bem o profissional, além de buscar parceiros para ajudar na conscientização da importância do Censo.
“A gente tenta sempre destacar que os dados coletados são sigilosos. Sendo assim, a população pode ficar tranquila para responder os questionários. Outra medida é a busca de parceria com as prefeituras em prol de ampliar a comunicação sobre o Censo. Além disso, buscamos antecipadamente ter contato com síndicos para intensificar a importância do trabalho dos recenseadores e tranquilizar os moradores”, esclarece Urpia.
Boas experiências
Na contramão dos recenseadores que enfrentam diversas dificuldades em relação à recepção da população, há aqueles que são acolhidos pelos moradores. É o caso de Fábio Ribeiro, que exerce a função em Feira de Santana. “Já aconteceu de em uma visita a um domicílio, eu tomar café com o pessoal que conversei. Foi bem legal”, lembra Ribeiro.
Buscando evitar estresse, ele diz que usou como estratégia a escolha de um setor perto do bairro em que reside. Então, a maioria dos questionários fez com amigos, vizinhos e familiares. Mas nem sempre apostar na proximidade local é necessário para se conseguir uma boa recepção dos pesquisados.
É o que conta Joana Alves, 26, ao afirmar que sua rotina tem sido tranquila. “Estou sendo bem recebida em todos os prédios que entro. O único entrave é o acesso ao condomínio. Você tem que falar com síndico e pedir acesso, mas isso é algo que consigo resolver”, diz Joana.
Fonte: Correio