MPF quer fim de violação de direitos em escolas públicas da Bahia que mantêm cooperação com a Polícia Militar

Escolas públicas municipais no estado da Bahia que passaram a ter a gestão compartilhada com a Polícia Militar não poderão mais restringir indevidamente a liberdade de expressão, a intimidade ou violar a vida privada de seus alunos, seja por meio de imposição de padrões estéticos, pelo controle de publicações levadas pelos estudantes para escola ou feitas em redes sociais, ou proibição à participação em manifestações – entre outras restrições consideradas pelo Ministério Público Federal como inconstitucionais e que não têm potencial de melhorar o ensino.

Na sexta-feira (26) o MPF, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão na Bahia, encaminhou uma Recomendação sobre o tema a prefeituras e a todas as escolas públicas do estado que mantêm cooperação técnica com a Polícia Militar para a aplicação da metodologia dos colégios da PM nesses estabelecimentos de ensino. Atualmente, 63 escolas públicas municipais na Bahia, em 58 diferentes cidades, executam esse tipo de parceria.

De acordo com a Recomendação, as escolas com gestão compartilhada entre os municípios e a Polícia Militar não deverão impor aos estudantes padrões estéticos quanto a cabelos, unhas, forma de vestir ou obrigatoriedade de uso de bonés ou boinas, dentre outros.

Essas unidades também não poderão fiscalizar ou proibir comportamentos neutros dos alunos que não venham a afetar diretos de terceiros ou interesses públicos – como consta no regimento disciplinar de algumas delas –, tais como frequentar local de jogos eletrônicos, usar óculos esportivos, namorar, ou qualquer outro tipo de proibição baseada unicamente em moralismo e incompatível com o Estado Democrático de Direito.

O texto também determina que seja respeitado o direito à liberdade de expressão dos estudantes, que não poderão sofrer controle acerca do tipo de publicação que levam à escola ou fazem em redes sociais, ou mesmo quanto à participação em manifestações – sejam políticas ou reivindicatórias, dentro ou fora da escola, fardados ou não.

Além de estabelecer que os termos da Recomendação devem receber ampla divulgação, o Ministério Público Federal orienta ao Comando da Polícia Militar da Bahia que se abstenha de firmar ou colocar em execução novos acordos que resultem na aplicação da metodologia dos Colégios da PM em escolas públicas nos termos em que essa parceria vem sendo feita, por “incompatibilidade com a Constituição Federal, convenções internacionais, leis e resoluções do Conselho Nacional da Educação, além de importar em violações múltiplas de direitos fundamentais de crianças e adolescentes”, destaca o procurador regional dos Direitos do Cidadão na Bahia, Gabriel Pimenta.

Os órgãos oficiados terão até 15 dias para informar as medidas adotadas para o cumprimento da Recomendação, ou as razões para o seu não acatamento. Uma cópia do documento também foi enviada ao Governador do Estado e aos Tribunais de Contas do Estado e dos Municípios, a fim da realização de controle de suas competências quanto à legalidade, legitimidade e economicidade da política pública em questão.

Restrições e rotina militar – No estado da Bahia, cooperações técnicas para a militarização de escolas públicas municipais estão em funcionamento desde 2018. Embora a Constituição Federal determine, em seu art. 206, que os profissionais da educação escolar das redes públicas ingressarão na carreira exclusivamente por concurso público, o termo de cooperação permite à Polícia Militar nomear livremente militares inativos para funções nas escolas municipais. A indicação também se dá à revelia do que estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação quanto aos requisitos para atuação na educação básica, visto que não são feitas exigências de formação específica aos militares indicados. A remuneração mensal paga pelas prefeituras varia entre R$ 2 mil a R$ 3 mil.

“Ao adotarem o modelo de ensino de colégios da PM, essas escolas públicas passam a incorporar rotinas e a cultura militares. São impostos aos alunos padrões estético e de comportamento baseados na cultura militar, sem qualquer relação ou potencialidade para a melhoria do ensino. Os regulamentos disciplinares preveem que os alunos devem se apresentar diariamente com o uniforme limpo e passado, com fivela no cinto, sapatos e coturnos polidos e sem qualquer tipo de tatuagem aparente quando da utilização do uniforme, além de orientar a apresentação pessoal até dos professores e professoras”, detalha o Ministério Público Federal.

Para os alunos do sexo masculino, por exemplo, é proibido o uso de barba e bigode, além da exigência de corte de cabelo em padrão militar. Já as alunas devem, obrigatoriamente, ter cabelo de tamanho longo ou médio, “preso em coque, com redes, a qual deve ter a cor do cabelo”, sendo vedado o uso de penteado “exagerado (cheio ou alto)”. Os regimentos ainda proíbem o uso de brincos que ultrapassem o lóbulo da orelha e de piercings, além de limitar o tipo de maquiagem, batons e esmaltes, cujas cores e tipos permitidos são expressos. Os estudantes que não cumprirem esses padrões, inclusive fora do ambiente escolar, quando fardados, podem sofrer sanções disciplinares que chegam à possibilidade de expulsão.

Contudo, a apresentação pessoal escolhida pelo indivíduo em sua forma de vestir, adereços, corte, penteado e coloração do cabelo, maquiagem e adereços, é manifestação de sua personalidade, devendo ser respeitada pelo Estado, em razão do princípio da dignidade da pessoa humana e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Além disso, a Recomendação destaca que a imposição de padrão estético uniforme aos alunos e alunas impacta mais intensamente em indivíduos de grupos minoritários, marginalizados ou alvo de preconceito, que se veem impedidos de manifestar as características de suas personalidades e culturas diferenciadas, especialmente quanto às identidades étnico-raciais, religiosas e de gênero.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão alerta que, diferente dos colégios militares – que possuem público específico, com a maior parte das vagas reservadas a filhos de militares, que buscam essa opção baseada na hierarquia e disciplina, cuja finalidade é formar futuros militares – os demais colégios públicos são voltados para a comunidade em geral, composta por pessoas de diferentes personalidades e vocações, devendo formar os alunos e alunas com base no pluralismo e na tolerância, com respeito e incentivo às individualidades e diferenças socioculturais.

Violação de direitos – Na Recomendação, o órgão do Ministério Público Federal ressalta que o princípio da dignidade da pessoa humana, estabelecido pela Constituição Federal, garante ao indivíduo o direito de fazer suas próprias escolhas, segundo seus planos de vida e projetos existenciais, a partir das suas visões de mundo. Nesse sentido, os direitos à intimidade e vida privada e de liberdade de consciência e pensamento impedem que agentes do Estado ou particulares interfiram nas escolhas íntimas individuais, especialmente quando não prejudiquem terceiros.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão chama atenção ao fato de que essas garantias são especialmente aplicáveis a crianças e adolescentes, cujo processo de formação da personalidade deve ser objeto de especial cuidado, visto que o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) prevê o direito à inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral desse grupo populacional.

Ainda de acordo com o órgão do MPF a restrição ao debate e ao dissenso é incompatível com a democracia e com o próprio ambiente escolar, o qual pressupõe a liberdade de expressão, devendo ser incentivadas as críticas e o dissenso, naturais ao processo de ensino/aprendizagem.

“Numa sociedade democrática e plural como a brasileira, além de transmitir conteúdos técnicos e preparar os estudantes para o mercado de trabalho, a educação é instrumento para preparar indivíduos autônomos, que formem livremente sua própria identidade e definam seus projetos de vida, aprendendo a valorizar e conviver com a diversidade de identidades, crenças, pensamentos, culturas e modos de ser e viver, sem preconceitos de qualquer natureza”.

Para a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, além de resultar em violações múltiplas a direitos fundamentais de crianças e adolescentes, a aplicação da metodologia militar em escolas públicas municipais não conta com potencial para a melhoria desejada do ensino – que depende de maior investimento em educação, com melhoria da estrutura física e valorização dos docentes.

Neste sentido, é destacado que os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) sobre as notas do Enem de 2015, último ano em que as médias das escolas foram divulgadas, apontam, por exemplo, que das 20 escolas públicas mais bem avaliadas no estado Bahia, 17 eram unidades do Instituto Federal da Bahia ou do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do estado – instituições públicas de ensino não militarizadas.

A recomendação ainda aponta a necessidade de garantir a segurança pública nas escolas públicas e no entorno sem violação dos direitos fundamentais dos estudantes. “Os estudantes, principais vítimas da violência, em vez de serem duplamente penalizados, com ensino autoritário, que suprime suas liberdades e individualidades, devem ser alvo de políticas públicas que promovam sua proteção integral, com garantia à incolumidade física e psíquica e à educação adequada para o livre desenvolvimento da personalidade”, destaca o Ministério Público Federal.

MPF-BA